Bem-Vindo ao Estação 018!


Seja bem-vindo ao "Estação 018"! Um blog pouco reticente, mesmo cheio destas reticências que compõem a existência. Que tenta ser poético, literário e revolucionário, mas acaba se rendendo à calmaria de alguns bons versos. Bem-vindo a uma faceta artística do caos... Embarque sem medo e com ânsia: "Estação 018, onde se fala da vida..."

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

ilegível


senhora
o que escreveram em ti
me é ilegível:
caracteres antigos
verdadeiros arcaísmos

não entendo o que te disseram

(e o que vislumbro
é tão absurdo
que prefiro negar)

nos teus olhos inconstantes
(ainda que belos)
vejo cidadelas
fortificações antigas

e minhas falas 
vêm de cidades suplantadas
muros cobertos de relva nova

meus velhos muros
hoje são puro verdor
e ver dor purifica

teu cansaço
parece gozo
e teus raros 
carinhos
bem caros
são dores
indolores

a anestesia
é pura
sensação
de alegria
arredia

o teu nome eu nem lembro
mas se tua prisão é florida
e já vês o fim da tua vida
vai, que já passou setembro.

Raul Albuquerque
31/10/2013

terça-feira, 29 de outubro de 2013

imensurável


- você me ama?
- sim sim sim
- quanto você me ama?
- quinhentos e noventa e mil

esse amor que
de tão imenso
chega a ser 
imensurável

os bons tempos 
em que o amor
- assim como outros delírios -
não precisava fazer sentido

a dormência 
em que as declarações
não precisavam de rima
nem de matemática

o próprio amor
cobria as incongruências,
como se depois de falar 
quinhentos
a gente percebesse
que era pouco
e acrescentasse
noventa
mas ainda seria pouco
e a gente coloca mais 
mil
mesmo que atrasado 
e fora de ordem

o próprio amor
cobria as incongruências

esse amor que
de tão imenso
chega a ser 
imensurável

e assim resta
a sensação 
de que ainda o mil
não poderia 
quantificar 
o quanto aquele janeiro
era largo
o quanto aquela presença
era preciosa

esse amor que
de tão imenso
chega a ser 
imensurável

e eu digo que
quinhentos e noventa e mil
foi a melhor resposta
que já dei na vida

Raul Albuquerque
29/10/2013

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

cortejo

rodas de cravos
rosas de várias cores
e outras flores 
cujos nomes não sei
mas são belas
e olhar para elas 
traz uma paz 
sem nome

bancos de madeira
a família inteira
num silêncio culpado
tenso e encorpado
mas não doloroso
não há crime doloso
em não lamentar

se cai uma lágrima
é logo enxugada
por inútil ser
o caso é sem volta
e não há escolta
que possa proteger 
um sorriso

o pesar é regra
e a alma pesa
dois quilômetros
de saudade sem par
de amor impreciso
a detonar
o seu regrado
improviso

o teto alto
não imita o céu
no ato
mas guarda
no silêncio intocado
um cântico
a ser executado
depois

de dois em dois
de par em par
é natural
ir lá olhar o fim
e assim
ter certeza
que a natureza
não gostou de mim

algumas frases ensaiadas
sobre fases necessárias
e dores que vem
para o bem
mas que passam
e ficam como contos
de encontros 
inesquecíveis

tentam beatificar
como se fosse imaculado
puro e sem pecado
mas sabem dos 
erros repetidos
das falhas loucas
das opiniões sem sentido

lembram do dia
da bebedice
e do disse-me-disse
que corria sobre
aquele dinheiro
mas silenciam
como se a morte
filtro fosse onde
o que é bom ficou
e o podre foi-se

uma leve movimentação
anuncia que o cortejo
vai começar
como se o último desejo
fosse passear
pelas ruas distraídas
enquanto se trai
a própria vida
ao morrer

o cortejo parece 
ainda um adeus
mais prolongado
a despedida que
fica maior por não
querer despedir-se

desalentos
e passos lentos
tomam a rua

algumas nuvens curiosas
seguem o corpo
e tapam o sol
silenciosamente os de luto
agradecem
pois faz calor e o lenço preto
mais enxuga suor 
que lágrimas 

a rua corriqueira
e barulhenta
seca seu som
em respeito ao corpo mudo
que passa
ninguém manda ou organiza
as almas sentem o vazio
cães gatos homens pássaros
nem um pio

ao aproximar-se do fim
a cova rasa a terra
de boca aberta a
certeza incerta
de um fim depois
do fim um re-fim
e vários reféns

sem viúvas
sem órfãos
deixou inutilidades
deixou pesares
pequenas dívidas
eternas dúvidas
e legou um
silêncio reinante

sigo meu próprio
cortejo o fechar do caixão
não me sufoca o cair do corpo
não me doi a terra sobre a tampa
não me cobre lágrimas 
não me comovem 
não choveu

Raul Albuquerque
10-11/10/2013

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

doce

a cascata 
forma o caminho doce
que a minha fala 
percorre
e consome

levantar os olhos
e ver dois morros
e depois dos morros
haver o sol luzindo
  no céu 
       da tua boca
que sorri 
    gozando da minha cara

a minha fala
fala minha língua
e você resmunga 
desejos incertos
e abertos festejos

(e eu 
      que não sei sambar
   te fiz sambar 
            na minha língua)

R. Albuquerque
07/10/2013

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

obra-prima

no norte de Paris
os dedos do menino seguram o livro
os olhos do menino fitam o livro
o rosto do menino faz sombra sobre o livro

no sul do Pará
o rosto da menina faz sombra sobre o livro
os olhos da menina fitam o livro
os dedos da menina seguram o livro

não é o mesmo livro
mas o livro pouco importa
ambos ignoram o livro
querem escrever suas histórias
talvez não sejam publicadas
e suas mortes resumam-se
a uma nota linear e gélida de óbito no jornal do bairro
mas querem escrever sua história
e, já que irão escrevê-la,
que seja uma obra-prima (que só precisa ser lida por um leitor pra ser linda)

Raul Albuquerque
02/10/2013