Bem-Vindo ao Estação 018!


Seja bem-vindo ao "Estação 018"! Um blog pouco reticente, mesmo cheio destas reticências que compõem a existência. Que tenta ser poético, literário e revolucionário, mas acaba se rendendo à calmaria de alguns bons versos. Bem-vindo a uma faceta artística do caos... Embarque sem medo e com ânsia: "Estação 018, onde se fala da vida..."

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Os três sorrisos e a última paciente...

Inicio o ano, inciando minha carreira de contista... espero que gostem...



E
le sorriu. E, mantendo o sorriso, guiou-a até a porta e despediu-se com um aperto de mão fraco, só pra não passar por médico grosso. Aquele sorriso parcial e inexpressivo que parecia ser tão cordial, na verdade, escondia uma face irônica: “Ela está aqui rindo, mas não deve durar muito. Já é um quadro muito avançado.” Foi fechando a porta lentamente e mantendo o sorriso, mas no exato momento em que se fechou a porta, fechou-se também o sorriso. Aquele sorriso fechou-se.
Fechada a porta, ele correu para a sua cadeira e desabou como se tivesse sofrido trabalho escravo, situação muito longe da sua. Olhou para o relógio e, com profunda raiva de alguma coisa, percebeu que ainda eram cinco horas. Logo, ainda havia um paciente.
Pediu a alguma coisa ou alguém que regia o universo que o paciente faltasse por qualquer motivo. Não importava o motivo da falta, o que importava era ele ir pra casa mais cedo para realizar mais uma tentativa de ser feliz sozinho. Ele realizou uma prece sem destinatário definido com os olhos fixos no relógio. Depois olhou para o telefone e esperou ouvir que o último paciente faltara.
O telefone tocou. Ele atendeu. O paciente viera. Na verdade, a paciente viera. Sem dizer uma palavra, ele maldisse toda a sua existência até ali. Retomando as palavras, disse que ela podia entrar.
Ela deu leves batidas na porta e, rapidamente, abriu-a. Deu de cara com o sorriso dele.
Ele sorriu. Armara aquele sorriso na hora e era exatamente igual ao último, aparentemente. Este também era parcial e parecia cordial. Este escondia uma face irada contra o tudo, ou contra o nada, ou contra o todo de uma vida que geralmente, juntando mais e menos, problemas e soluções, defeitos e virtudes, resulta em nada.
Com o sorriso, indicou a cadeira. Ela sentou-se. Ele percebeu que o rosto era conhecido, mas recorreu à ficha para descobrir qual o nome e o caso daquela que deveria ter faltado. Não achou a ficha e, mesmo assim, continuou a penosa conversação.

- Oi, qual é o problema que lhe traz até aqui?
- Doutor, eu já vim aqui há algum tempo com algumas dores e o senhor me indicou vários exames. Demorou um pouco, mas eu fiz todos. – colocou os papéis sobre a mesa – Estão todos aí!

Com grunhidos indiscerníveis e monossilábicos, ele ia analisando os exames com uma preguiça que parecia atenção e paciência, mas não passava de preguiça, a mais vil e pecaminosa preguiça.
Depois de certo tempo investido em fingir ler resultados, ele olhou para ela com tom de quase-compaixão, pegou uma folha, começou a rabiscar termos ilegíveis e, de modo desdenhoso, entregou-a a folha com várias prescrições bem paliativas.
Ela segurou o papel, guardou-o na bolsa, levantou-se e agradeceu sinceramente. Caminhou até a porta lentamente, cuidando para não fazer muito barulho. Estava decidida a sair, mas algo a impediu de fazê-lo. Ela permaneceu segurando a maçaneta da porta, mas não a girava. Mantinha o olhar fixo no relógio que marcava algo em torno de 17h45min. Ela olhou pro médico e perguntou:

 - Senhor, me desculpe a indelicadeza, mas... – pausou-se por algum motivo de auto-regulação e retomou – eu vou morrer?
- Claro! – disse ele com cara de brincadeira – todos nós morreremos um dia.
- Doutor, guarde suas piadas para quem gosta. – tomou um tom sério e lamentoso – Nós dois sabemos do que estou falando.
- Desculpe-me, a intenção não foi ofender...
- Por favor, poupe o nosso tempo e diga logo se irei morrer por causa dessa doença ou não! – já não era a mulher que entrara timidamente, ela agora lutava pela sua vida, de certo modo.
- Quer se sentar? Acalme-se conversaremos com calma sobre este assunto. – Ela logo se sentou e manteve o olhar inquisidor.
- Pela sua recusa, entendo que eu vou sim morrer por causa desta doença. Então, você poderia me dizer quanto tempo eu tenho de vida?
- Nós... – Já muito assustado falava rapidamente e, às vezes, muito pausadamente – Nós não podemos afirmar um tempo exato...
- Entendo, eu posso morrer atropelada ali na esquina, posso ser assassinada pela minha filha amanhã... Entendo... E acho melhor que não me diga. Nessa idade, já deveria ter me acostumado a viver cada dia como se fosse o último.
- Não seja tão fatalista, tente ser mais otimista – ele nem pensava no que falava, só citava frases decoradas durante a vida profissional.
- Otimista?! – ela tomou tom sarcástico – O otimismo é o disfarce dos que nada esperam da vida. Otimistas alienam-se ou frustram-se. Os realistas geralmente têm suas expectativas correspondidas. Eu sou realista! Sem negar que tenho traços pessimistas, mas porque a vida me obrigou a carregá-los comigo.
- A senhora fala – ele abaixou as armas – como quem já sofreu muito.
- Meu caro, - vestiu a capa do eterno lamento – eu tenho 57 anos! Eu já vivi muito, por conseguinte, já sofri muito. Mas... Por que logo agora? – lágrimas tomaram-lhe os olhos.

O médico já não sabia o que fazer ou falar. O silêncio longo e tenso tomou tudo. Tomou a sala, as duas almas, os quatro ouvidos e as duas bocas. Tomou as duas vidas. Assim, aquele silêncio tenso e longo tomou e retomou infinitas lembranças.

- Por quê? – ela já não falava para o médico, perguntava a alguém dentro ou fora dela – Para mim, tudo sempre foi muito triste, tudo foi muito “é melhor esquecer”. Quando tudo parece estar mudando pra melhor, quando tudo muda de figura, eu fico sabendo que vou morrer! Mas, por quê?

Depois desta fala tão clara, o médico levantou os olhos e viu todos os sulcos da face daquela mulher sendo preenchidos por correntes de água que fluíam sem parar de seu olhar, até então, tão sóbrio.
Humanidade. Fragilidade. Estas palavras nunca se fizeram tão sinônimas. Ele temeu pela sua vida. Ele olhou para a estante de livros e percebeu o quanto eles eram supérfluos. Lembrou-se do quanto tinha estudado para chegar até ali, do tempo investido para chegar até ali, até aquele cansaço, até aquela tristeza, até aquela semi-morte, a morte que só espera a consumação científica.
Aquilo nunca lhe havia acontecido. Lembrou-se de um encanador que viera uma vez ao consultório para reparar um problema qualquer. Enquanto esperava o pagamento, o homem, que parecia ter seus quarenta e tantos anos, lia um livro pequeno. Quando o médico ia dar-lhe o dinheiro, não pode deixar de observar uma frase destacada na página: “A vida é um vão entre dois nadas.”
Aquela frase agora fazia todo o sentido. No momento, foi motivo de um riso debochado, seguido de um pagamento frio. O homem até murmurou um “obrigado!”, mas não ouviu a resposta. O médico é que lhe devia um grande “obrigado!”. A frase mudaria sua vida.
Depois da introspecção, ele voltou os olhos para a mulher. Percebeu que ela aprontava-se para sair e que ela já tinha enxugado as lágrimas. Viu-a sair lentamente. Viu-a segurando novamente a maçaneta. Viu-a girar a maçaneta. Viu-a abrir a porta. Viu-a ir-se sem fazer barulho. Viu-a sumir na penumbra do corredor que levava à sala de espera. E, não mais a viu.
Ele fechou os olhos. Ele respirou fundo e afundou-se na cadeira. Ele abriu os olhos. Ele pensou em olhar para o relógio pra ver a hora, mas não o fez, pois não era necessário. Ele olhou para algo pela janela. Ele fechou os olhos novamente.
Ele sorriu. Mas este sorriso era inédito. Este eu não entendi. Nem ele sabia por que sorria. Só posso afirmar que ele sorriu.
                                       
Raul Cézar de Albuquerque

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