Quem leu minha
crítica ao livro “A cidade e os cachorros”, sentiu que eu gostei muito do
estilo do peruano Mario Vargas Llosa, embora não tenha poupado os pontos
negativos.
Gostei. Gostei
muito da teia narrativa deste gênio de nossos dias, digno, mui digno do Nobel
que recebeu. Gostei tanto que fui procurar outro livro dele para ler, para
concretizar a sua imagem de bom escritor em minha cabeça. Num dia, de bobeira,
numa livraria encontrei este livro com uma capa muito bonita, mas o que me fez
comprar o livro foi uma pequena colocação na quarta capa, dizia assim:
“Uma crítica
social bem-costurada, tão afiada qualquer livro de Balzac ou Flaubert.” The Washington Post.
Crítica social, tudo bem. Qual escritor
não faz isso de vez em quando? Bem-costurada,
eu já esperava. Não seria o ponto-chave da genialidade de Llosa? Mas... Compará-lo a Honoré de Balzac e a
Gustave Flaubert, ícones eternos das literaturas francesa, realista e universal,
era demais pra mim.
Comprei. Não
me arrependi. Segue a minha crítica:
Lituma, o
protagonista, é um cabo do exército peruano. Tomás Carreño é seu ajudante.
Ambos vivem num posto policial, na encosta de um morro próximo a um acampamento
de trabalhadores de uma obra que tem tudo pra não terminar. Lituma e Carreño
têm uma missão: descobrir a razão de três desaparecimentos e os culpados pelos
mesmos.
Do começo já
percebemos o poder de descrição poética de Llosa que não é carregada como os
textos de Tolkien nem leve demais como os textos de L. Frank Baum. Tais
descrições tomam o livro do início ao fim.
“[...] a mulher deu meia-volta e foi
enfrentar o aguaceiro. Poucos minutos depois tinha se dissolvido na umidade
plúmbea, rumo ao acampamento.” Pág. 14
A crítica
social de Llosa citada pelo The
Washington Post não se encaixa na ordem econômica nem política (embora
também exista), mas na visão cultural do povo peruano. Llosa critica ferozmente
aquela sociedade supersticiosa demais, que não nega suas raízes indígenas, que
não esquece seus rituais.
“– Disse o que vi. Que ele ia ser sacrificado
para aplacar os malignos que causam tantos danos na região. E que foi escolhido
por que era impuro.” Pág. 38
O que me
impressiona em Llosa é sua capacidade de entrelaçar histórias que,
aparentemente, nada têm em comum. O que ocorre é que ele inicia uma narrativa
linear, depois a interrompe, conta uma pequena história totalmente diferente da
narrativa, logo depois volta à narrativa e liga a narrativa à pequena história.
É fascinante.
Seguindo a
tradição literária latino-americana, o livro tem ligações claras com o período
em que o Peru foi dominado por muitas milícias leninista-marxistas. Dando um
tom de humanidade, ele singulariza e humaniza o guerrilheiro peruano.
“Era um jovem com um olhar duro, com a
expressão de alguém que sofreu muito e que odeia muito. Como podia, sendo quase
um menino?” Pág. 47
O cabo Lituma
não fica só na idealização, mas também tem seus desejos expressos através de
Llosa, às vezes sem muita classe, porém com muita sinceridade.
“– Cinco de uma vez! Trocar de fêmea todo
dia, toda noite, como se troca de cueca ou de camisa. E nós dois aqui de mãos
abanando, Tomasito.” Pág. 55
Também é
interessante ver o contraste entre o experiente e já mutilado cabo Lituma e o
jovem e ainda romântico Tomás Carreño. Carreño desenvolve uma paixão não-correspondida
por uma mulher que não quer nada com ele e, no acampamento, usa Lituma como
ouvido-amigo.
“[Lituma diz] Não precisa ter vergonha.
Umas lágrimas não fazem ninguém desmunhecar.” Pág. 66
“[Carreño diz] Eu iria até a cela dela só
para me ajoelhar e adorá-la. Ela é minha Santa Rosa de Lima.” Pág. 242
Numa das
historietas paralelas, Llosa conta a história da cidade de Andamarca. Lá, uma
milícia chegou e iniciou um julgamento popular para pequenas causas pessoais. O
fim não foi muito bom.
“Por volta do meio-dia, muitos
andamarquinos já se aventuravam a ir até o centro da praça para manifestar suas
queixas, fazer suas recriminações e apontar os maus vizinhos, os maus amigos,
os maus parentes. [...] Todos foram condenados por um bosque de mãos. [...] Foram
executados de joelhos, apoiando as cabeças num broquel de poço d’água.” Pág. 70
O conflito
cultural é muito presente. Os da costa contra os índios. Há uma espécie de
etnocentrismo exacerbado muito criticado pelo escritor. A crítica social vai
também à imaturidade cultural e social dos moradores dos Andes que não negam
suas raízes indígenas, mesmo que estas sejam uma ameaça a eles próprios, como
povo que são.
“– Engolem qualquer bobagem, como essas
histórias de pishtaco e de muki, coisas que ninguém acredita mais em nenhum
lugar civilizado.” Pág. 92
“O que faziam para que a morte não
derrotasse a vida? [...] Ele sabia que só seria chefe e autoridade até lá;
depois, o sacrifício. [...] Morria como herói, querido e reverenciado. Isto é o
que ele era: um herói. [...] Seu reinado acabava em sangue.” Pág. 235
No decorrer da
história, Llosa não nega a sua carga de influências realistas e começar a
indicar ideias mais deterministas, onde até o próprio Lituma começa a se
acostumar com as “ideias” daquele povo, que no princípio eram tão repudiadas. O
escritor passa a ideia de que Lituma nada pode fazer contra a tradição. Uma
tradição cruel, mas uma tradição cultural que permeou os séculos.
“– Em compensação, o senhor conserva a
cabeça fria neste manicômio, meu cabo.
–
Deve ser por isso que me sinto tão desambientado em Naccos, Tomasito.” Pág. 243
O
desfecho da história é surpreendente. Não deveria ser, pois o leitor é
preparado para tal fim a cada capítulo, mas Llosa conta o fim de modo tão frio
e natural que o leitor se espanta (Algo que me lembra o mestre José Saramago, a
frieza). Assim, um fim que tinha tudo para ser incrível é desprezado – pela
falta de expressão – e focalizado – pela sua natureza cruel – ao mesmo tempo.
Após
toda uma narrativa pesada e cheia de crueldades e vazios emocionais, aparece um
final feliz. Um final que emerge do nada, uma flor no meio do deserto. No
epílogo, tudo se resume e se ajusta muito bem, nada fica solto no ar.
Mario Vargas Llosa, um gênio como poucos em
nossos dias. O livro é tão bom que fico tentado a dar nota dez ao livro,
mas por alguns conceitos defendidos prolixa e friamente dou 9,5. Estou ávido
por mais de Llosa. Fique com a última colocação do livro, algo de prosa
poética.
“[...] Sentiu uma lufada de vento gelado e,
apesar do seu aturdimento, viu que a esplêndida meia-lua e as estrelas
iluminavam com toda nitidez, num céu sem nuvens, os agudos picos dos Andes.”
Pág. 270
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